A psicóloga e musicista Laís Arantes, 29, visitava uma cachoeira em uma cidade do interior de Minas Gerais quando decidiu registrar o eio em um vídeo. Na gravação, ela aparece brevemente, de costas e nua, antes de um mergulho. A cena, posteriormente, foi compartilhada em seu perfil no Instagram. Foi o bastante para que, rapidamente, uma enxurrada de reações chegasse na forma de mensagens diretas. “Homens que nunca haviam falado comigo, inclusive alguns mais velhos e casados, interagiram com a postagem”, comenta a cantora, que é lésbica, já foi casada com uma mulher e fala publicamente sobre questões relacionadas ao universo LGBTQIA+ em suas redes sociais.
Como Laís sublinha, o fato de ela não se interessar sexualmente por homens pouco foi levado em consideração pelos seguidores que se sentiram à vontade para importuná-la. “Eu, enquanto mulher, sou atravessada por essa objetificação diariamente, pouco importa o que eu vista ou como eu me coloco”, situa, reconhecendo que, dessa vez, no entanto, se surpreendeu com a repercussão que a publicação alcançou. “Meu perfil é aberto, por causa do meu trabalho com a música. E, na verdade, eu já esperava que aquilo fosse gerar mais interações do que usualmente. Mas esse engajamento me surpreendeu, chegando a ser três vezes maior que os posts que faço do meu trabalho”, expõe.
Em parte, o assédio vivenciado por Laís após a publicação foi motivado por um personagem curioso que vive nas redes sociais e que, mais recentemente, ganhou nome próprio. Trata-se do “Zé IML”, que Helen Pandolfo define como “aqueles caras que só aparecem quando postamos fotos em que o corpo fica exposto, como quando estamos de biquíni”. A estudante do curso de direito conta que, durante uma conversa pública no Twitter, criou o termo sem imaginar que a ideia fosse fazer tanto sucesso. “Sou estagiária em um Fórum de Justiça, em Jaguariúna (no interior de São Paulo). Então, para mim, o Instituto Médico-Legal (IML) é parte da rotina, por isso fiz essa conexão”, explica.
A expressão logo caiu no gosto popular e ou a ser utilizada como forma de humor ao mesmo tempo que trazia, em seu bojo, o debate sobre a objetificação do corpo da mulher. “A repercussão é que está me surpreendendo até agora”, ite ela, que tem um palpite sobre o porquê de o tuíte ter viralizado tão rapidamente: “Acredito que essa popularização aconteceu por eu ter dado nome para uma prática antiga, que já existe há muito tempo e que já incomodava muitas mulheres”.
A psicóloga Angela Boseli concorda. “Essa é uma prática muito antiga e culturalmente enraizada. De maneira resumida, é como se, ao ver uma postagem assim, esses homens se sentissem autorizados e até convidados a interagir. Se a gente pensar bem, essa dinâmica não se difere de interações fora da internet, em que esses sujeitos, de maneira grosseira, tentam chamar a atenção das mulheres”, compara, destacando que, nos dois casos, esses são episódios de assédio e de importunação.
Nesse sentido, em entrevista a O TEMPO no ano ado, em que discutiu como olhares, assovios e outras provocações inibem esportistas da prática de atividades físicas em espaços públicos, a pesquisadora Luciana Andrade, do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da Universidade Federal de Minas Gerais (Nepem/UFMG), já indicava que esse comportamento tem raízes estruturais e abrangentes. “É algo que diz dessa cultura de entender o corpo da mulher como algo sem direitos, como se o homem pudesse acionar aquele corpo para se satisfazer”, reflete.
“As situações de assédio e de importunação acontecem com todas as mulheres, independentemente da faixa etária e classe social. Quando focamos a roupa delas, a gente perde a explicação de por que as crianças também sofrem episódios do gênero. A questão, portanto, é anterior ao como se vestir ou ao que postamos. É sobre homens que pensam ter autoridade sobre esse corpo”, argumenta Luciana, inteirando que essas situações são parte constitutiva da vida das mulheres. “Se não sofreram, elas conhecem quem já ou por isso ou ainda vão ar”, pontua.
Efeitos
Luciana Andrade destaca que os efeitos da naturalização do assédio e da importunação podem ser graves. “É comum, para nós, mulheres, o medo de estar sendo seguida, de sempre mandar mensagem avisando que chegou bem em casa”, aponta.
Já Angela Boseli acrescenta que a objetificação também pode repercutir em uma sensação de menos valia, implicando em problemas de autoestima. Foi o que experimentou Laís Arantes após fazer o post em que aparecia nua. “Eu me vi nesse lugar de pensar que o meu trabalho tem menos valor para as pessoas que uma publicação do meu corpo e vi pessoas me reduzindo àquela publicação, desconsiderando todas as outras dimensões do meu eu”, sinaliza.
Mas Laís não se abateu e fez das atribulações uma oportunidade de reflexão. “Essa história me levou a pensar sobre o incômodo que gera o posicionamento de uma mulher que, livre, escolhe como quer se colocar no mundo”, diz, inteirando que ou a usar suas redes sociais para falar mais sobre o tema, abrindo diálogo com pessoas dispostas a ar em revista as próprias práticas e certezas.
Soluções
Não existe solução fácil quando se fala de um problema estrutural, culturalmente enraizado e que é reproduzido na internet ou fora dela. Um dos caminhos, opina Angela Boseli, a por um debate aberto e franco sobre temas como machismo, consentimento e assédio. “Não é uma tarefa simples porque estamos falando de algo que é comportamental e que nossa sociedade normatizou por muitos anos”, assevera.