Doze facadas tiraram a vida de Mestre Moa do Katendê (1954-2018) na madrugada do dia 8 de outubro de 2018, logo após o primeiro turno das eleições presidenciais. Atingido pelas costas, o mestre de capoeira baiano não teve como se defender. Minutos antes do ataque, o assassino, de 36 anos, defendera a candidatura de Jair Bolsonaro, enquanto Moa se posicionara a favor da eleição de Fernando Haddad, do PT. A intolerância política motivou o crime, como concluiu o inquérito policial.

Moa foi o primeiro professor de música do maestro Letieres Leite, 59. “Eu estava na pré-adolescência e estudava no colégio público Severino Vieira, em Salvador, que tinha uma orquestra afro-brasileira de percussão e canto dirigida pela musicóloga Emilia Biancardi, que era muito respeitada em matéria de memória da música ancestral baiana. Fiz um teste e ei na orquestra”, relembra Letieres. “O Moa era jovem ainda e tinha fundado o bloco Badauê. Infelizmente, ele faleceu por uma discussão política”, lamenta. 

Em junho, Letieres colocou na praça o álbum “O Enigma Lexeu”, com o quinteto que ele formou há dez anos. A última das sete faixas do repertório é “Mestre Moa do Katendê”, feita em 2005. “É uma coincidência trágica ela ser gravada agora, mas não houve essa intenção de que ela fosse um réquiem. O Moa fabricava caxixi (instrumento de percussão de origem africana), e eu usava os dele. Compus uma música tocando caxixi para homenageá-lo”, explica Letieres, que aproveita o ensejo para comentar o panorama político. 

“Acho temerário, mas, ao mesmo tempo, eu que vivi na juventude uma ditadura militar assumida, vejo que é uma oportunidade de grande resistência no âmbito da arte, que continua sendo uma arma para transmitir amor e conscientização. Nada pode nos calar”, destaca. 

Início. Depois desse primeiro contato, Letieres conta que se separou da música por muito tempo. Até os 19 anos, ele só lidava com “tinta, pincel, desenho e gravura”. “O impulso da criação vem do mesmo fogo, vejo imagens e penso no som”, diz. Em 1977, ele foi aprovado no vestibular de artes plásticas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Durante esse período de exceção do país, aconteciam mostras de som no diretório acadêmico do curso”, relembra. Na ocasião, um amigo possuía uma flauta transversal de plástico que “estava sobrando”. 

Letieres ou a tocá-la, enquanto comparecia a algumas matérias eletivas do curso de música, até que os colegas o “obrigaram a comprar uma flauta de verdade”. “Nunca tive planos de tocar flauta, a música foi um tsunami na minha vida. Olhei e já estava aquela enxurrada. É como o amor: quando você vê, já está casado”, compara. Daí por diante, Letieres e a música nunca mais se separaram, a despeito da rotina nômade que ele se impôs. 

Nos anos 80, o músico morou e aperfeiçoou seus estudos em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul e na Áustria. No continente europeu, conheceu o maestro italiano Alfredo de La Fé. “A consciência rítmica cria a potência, que eu trazia intuitivamente. Os cubanos me deram o caminho da organização”, informa ele, em referência ao Estudo Superior de Música de Havana, projeto que, a partir da década de 70, mapeou a produção cubana. 

Munido dessas influências, Letieres retornou à sua cidade natal em 1985 e, na capital baiana, criou, em 2006, a Orkestra Rumpilezz. Dividindo as sílabas, surge o significado do batismo da orquestra. “São os nomes dos tambores das cerimônias afro-brasileiras; o rum é o maior deles; o rumpi é o médio; e o le é o pequeno; os ‘zz’ vêm do jazz; são os dois universos em que me inspiro para compor”, argumenta o maestro. “Toda cidade baiana tem orquestra de sopro e percussão, elas começaram a surgir no recôncavo baiano no final do século XIX, são centenárias. A base da Rumpilezz vem desses locais”, completa.

Para Letieres, o fato de os integrantes da Orkestra não terem uma “formação acadêmica convencional é que trouxe o diferencial” da empreitada. “Mesmo aqueles que não frequentavam o candomblé eram vizinhos de terreiros, então eles conhecem todos os toques, pegaram por osmose”, sublinha. Em sua palestra “Matrizes africanas na música brasileira”, o maestro ensina que “no bojo da diáspora africana confluem rap, reggae, rock, merengue, funk carioca, músicas regionais e folclóricas”. 

Encontros. Com dois discos gravados, a orquestra comandada por Letieres ganhou prêmios e chamou atenção de outros músicos, que se tornaram colaboradores, como Ed Motta, Gilberto Gil e Caetano Veloso. O conjunto ainda homenageou Dorival Caymmi (1914-2008) e prepara um disco em que revisita o emblemático LP “Coisas” (1965), de Moacir Santos (1926-2006). 

“Toda vez que você estiver triste, escute as melodias do Moacir para se reconectar com a alegria”, sugere Letieres, que, no mês ado, venceu o prêmio Bibi Ferreira na categoria melhor arranjo em musicais, pelo trabalho realizado no espetáculo “Elza”. “A Elza Soares sempre esteve conectada ao contemporâneo, é só ver o início da carreira dela com o samba jazz”, observa. 

No momento, Letieres dirige o show “Claros Breus”, de Maria Bethânia, depois de escrever os arranjos para o ainda inédito álbum gravado pela cantora em tributo à Mangueira. “É como pensar em uma ópera, cada palavra se conecta à próxima música, Bethânia tem uma clareza dramatúrgica muito forte”, elogia. 

Nas horas de lazer, o entrevistado descansa assistindo ao “cinema de arte alemão, italiano, francês, cubano, oriental e argentino”. “Sou cinéfilo. Assisti ‘Bacurau’ duas vezes. É um filme dentro do outro, existem três filmes ali dentro, falta assistir ao terceiro”, brinca. “Vivemos tempos sombrios, de uma incompreensão absurda, depois de tanto avanço, parece que o barco está remando para trás. ‘Bacurau’ é a remada para frente”, encerra.